terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Cotidiano aos 80 - Chuva da manhã

Hoje quando acordei havia ainda uma chuva fininha caindo. O gotejar na janela era espaçado e contínuo. Demorei para abrir os olhos e demorei mais para tomar coragem em abrir a persiana que estava fechada. Olhei pelo vidro da janela e vi uma grama verdinha, árvores com folhas verdes molhadas. Lentamente me dei conta de que a vida goteja  sempre uma possibilidade no dia que se inicia. Dei conta dos anos que se passaram e os cabelos que caíram de minha cabeça. 
O mundo está complicado demais, nada é tão simples para nos que já não somos jovens. 
Outro dia entrei numa dessas cafeterias e pedi um café. Eu gosto de café. Café sem aqueles penduricalhos que hoje em dia colocam. Você pede um simples café e logo a moça lhe traz um cardápio dos tipos inusitados de café. 
- Senhor, temos café com creme. Café gelado com creme  Café expresso com creme, Café com canela e creme...  
Meus ouvidos param de escutar a palavra café e só o que me vem a mente é o dando do creme. Eu só quero um café preto, simples.
 
- ah! o senhor que um cafezinho? 
- Não, respondo eu. Eu quero um creme o café você deixa para outra pessoa. A faça-me o favor
- Cafezinho na mesa 7 por favor

Minutos depois, alguém vem sorrido com uma xícara do  tamanho do polegar, com um cafezinho. Olho para a cara alegre da atendente e não me dou conta de que é um cafezinho que deveria ser apenas amostra grátis. 

O mundo mudou muito e agora com tantas mudanças que eu não consigo acompanhar e me deparo com o cafezinho como algo extremamente de outro planeta.

Noutro dia voltei na tal cafeteria e a moça  me indagou se eu iria tomar um cafezinho. Logo imaginei o polegar de café. 
- Não obrigado, hoje quero um cafe expresso sem creme
Minutos depois, vem a moça com um copinho de água mineral, um biscoitinho e um café expresso.
Meu Deus o que significa isto. Eu confesso que não sabia o que fazer direito e tremendo como de costume, peguei o biscoitinho, e provei. Era docinho. Provei a água com gás. Por fim provei o café. Horrível. Forte demais da conta. Foi então que me dei conta de que como dispensei o creme, a água devia ser para diluir aquele petróleo espumante. Derramei a água aos pouco e fui diluindo e bebendo aquela mistura que ficou fria. gasosa e sem doce. Como não me agradava o gosto. comi o biscoito de uma vez só. Da próxima vez tomo só minha polegada de café. Nada de penduricalhos. 
 
Voltemos ao meu quarto. Abri a janela e veio aquele ar molhado e frio. Respirei fundo e sentir vida. 
Lembro-me de quando era criança e morava em uma casa de telhas francesas, sem forro. A chuva fazia aquele cheiro de barro descer até a gente  e eu respirava o cheiro do Adão feito por Deus. Gosto deste cheiro. 
Hoje sei que cheiros me dão prazer. Leonor, me dava muito prazer com seu perfume nas manhãs de domingo quando íamos a igreja. Cheiro de Leonor é cheiro de vida. Alias três lindas vidas. Leonor se foi há alguns anos e o cheiro que era dela, agora mora em meus pensamentos. 
Não me importo com o tempo e a saudade. O que me importo é sempre lembrar do cheiro. 
Meu neto um dia disse: Vô, o senhor sabe que com o tempo a primeira coisa que esquecemos é o cheiro?
Será?
Abrir a porta do quarto e fui direto para a porta da sala. Abri e caminhei um pouco naquele chão molhado. Tirei as sandálias e pisei. Como é bom esta terra molhada. Como é bom viver ainda na terra molhada. 
O céu está triste e chora a chuva para nos  faz alegrar. Será tristeza mesmo?  Tomara que esteja chorando de alegria. 
O céu quando chora bravo, solta raios e trovões. Mas quando está alegre é esta chuvinha fina que cai.  Homem velho sabe bem o que é chorar. Choramos a vida toda e por toda a vida. Choramos de alegria, de emoção e de tristeza. Às vezes choramos escondido. Homem chora.
Caminhei em direção a um pitangueira no fundo. Colhi umas duas pitangas madurinhas que dá gosto. Coloquei na boca e fui transportado para a Santa Cruz da minha infância. Pitanga na boca. 
Acorda homem! Não está vendo que já ficou velho e chuva não combina com sua idade?
Maldita seja nossa memória. Maldita seja nosso senso de coisas corretas. Ah, me deixa memória. 
Hoje não tem passeio na calçada. Hoje tem chuva, pé no chão e cheiro de terra de Adão. 

Meu neto não tem razão. A primeira coisa que esquecemos não é o cheiro, esquecemos das palavras. Pitanga nos faz meninos. 
Melhor sair da chuva e voltar pra casa. O céu chora de alegria eu sei. Leonor chorava também. 

Noutro dia vou  chorar e que seja assim, bem de mansinho para regar a vida de alegria.