segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Cotidiano aos 80

Dispenso-me de cumprimentar quem não gosto. Apenas um olhar e manejar de cabeça quase imperceptível já é o bastante. Não que eu seja mal educado, mas eduquei-me com os anos em que tinha pessoas que não gostava por perto e fazia parecer tudo naturalmente aceito.
Preocupo menos com as métricas e as rimas que a vida precisa ter. A vida não é nenhum soneto e eu nem mesmo sou poeta. Assim vivo mais leve em errar combinação de humor e palavras.  E há quem diga que a vida começa depois dos 40. Não concordo a vida começa quando a gente acha que deve começar. Que mal há em começar aos 80 e morrer aos 90 e assim mesmo achar que é bom?
Houve um tempo em que eu vivia temeroso em perder coisas importantes na minha vida. Hoje vejo que é uma bobagem estas coisas importantes, porque somente são importantes para a gente, não para o outro. Um belo dia você acorda morto e descobre que aquele seu livro predileto foi doado. Aquele terno caro que só usou poucas vezes em comemorações importantes, foi doado para um brechó da esquina e quem vai arrematar a peça, nem sabe o  valor dela. Coisas importantes são importantes para gente. Sabe aquele amor que a gente tem por coisas? Somente a gente sente, os outros nem estão ai para nada disto. Quando a vida não for parceira neste seu corpo, as pessoas irão vender, doar ou desfazer de tudo que você juntou com tanto afinco e amor. 
Prefiro coisas essenciais à coisas importantes
Decidi que não gosto mais de bolo de aniversário e nem mesmo vou mais a estas festividade familiares.  Eu decidi, uai e daí?
Ando, hoje com muita dificuldade. As pernas não tem mais a força da juventude, então ando pouco e devagar. 
Outra coisa que sempre detestei e hoje, na flor dos meus 80 anos dou-me o luxo é de não usar cuecas. Aquilo esquenta e atrapalha demais quando vou ao banheiro e o tremor das mãos não deixa desabotoar a calça com agilidade, ai quando consigo ainda tem a danada da cueca para baixar. Quase sempre não dá tempo. 
Hoje cultivo margaridas, tulipas e copos-de-leite. Mas gosto mesmo é de Hortência. Sim Hortência com H maiúsculo.  Ela sempre traz um café com leite para mim. 
Quando se chega ao limite da idade, os amores passados  trazem juventude ao nosso corpo já morto e vemos como desperdiçamos tempo com bobagens triviais e sentimentalistas. Desperdiçamos momentos com convicções infelizes que adquirimos da sociedade. Isto pode. Isto não pode. Amor assim, correspondido pode. Amor não correspondido, não pode. E lá se vai a juventude com tantas recomendações inúteis que se perde tempo em vivê-las.
Hoje não, o amanhecer se torna  ímpar e não se pode desperdiçar nem um raiozinho, porque pode ser um último derradeiro da manhã.  Neste, imperceptível, mover do tempo, damos conta de que a vida é para ser vivida e não para ser acumulada. 
Tomo café quando tomo. 
Banho, bastante demorado. 
Ando descalço para contrariar a todos. 
Gosto de tomar banho na chuva. Isto mata todos de raiva dizendo: você vai adoecer, não tem idade, e blá, blá, blá. 
Detesto remédios, mas gosto de tomar, quase sempre antiácidos sabor laranja. Gosto daquelas bolhinhas aromatizadas.
Gosto de crianças, não de todas, mas algumas.
Conheci um garoto, o nome dele é Pedro, tem 4 anos e me disse a coisa mais certa de todos os tempos. Ele me perguntou se eu já tinha nascido velho. Eu imediatamente disse que sim. Nasci velho  e fui ficando jovem e depois fiquei velho de novo. Ele então respondeu: Um dia quando eu for novo vou querer ficar velho também, mas um velho bem novo como o senhor. Gostei da filosofada do garoto.
Ah sim, permita-me dizer que sempre me considerei novo para minha idade.
O irmão do Pedro jogou a bola e quebrou uma das minha tulipas no jardim da frente.  A mãe dele veio e pediu desculpas e trouxe até um presente,  um livro de culinária bem legal. Hora destas vou experimentar fazer um daqueles pratos engraçados que tem lá.
Bom, deixa eu voltar a minha tarefa diária. Andar pela calçada cumprimentando somente as pessoas que eu gosto. Noutra hora eu volto e se não voltar, estranhe não deve ser porque a vida deixou de ser parceira.
Lá vem aquela senhora chata da casa 450, melhor virar a cara e olhar o outro lado da rua.