terça-feira, 21 de novembro de 2017

Sobre a pequena  mesa de madeira estavam uma folha de papel em branco, um lápis, uma caneta e uma caneca de café. Uma luz amarelada iluminava a mesa e sobre a volta uma escuridão fria e calma. Ouvia-se na chuva que caía o lamento dos pingos que tintilhava ao bater contra o piso. Noite fria e chuvosa aquela. Suas mãos, ainda vazias de tema, percorria as laterais da mensa buscando algo que lhe apoiasse as ideias. O relógio de pedra na parede de frente marcava duas horas da manhã e continuava a percorrer o tempo e o tempo parecia percorrer rapidamente aquela saleta. Os pés, descalços, trocava de lugar a todo momento e fazia movimentos rápidos e repetitivos de um lado para outro. A cadeira, de madeira clara com estofado azul, tremia  com os movimentos. 
As mãos percorrem simutâneamente, uma para apanhar o lápis e a outra para endireitar a folha. Havia nisto tudo uma ideia fabulosa? Uma inspiração repentina? Um  fio  de endireitamento das ideias? As mãos rápidas e ansiosas por escrever junta  o papel, o lápis e as ideias. Ninguém percebe, mas uma boa ideia tem tempo curto. É como um relâmpago que sai cruzando o céu de um azul mágico, com  distorções de forma, numa rapidez quase imperceptível. Um piscar d'olhos. Assim são as ideias, as inspirações na madrugada. As mãos, lápis e papel se juntam e tentam desenhar o que a inspiração manda, mas uma ou duas palavras surgem e apenas isto. Nada de uma frase estruturada, com ideias formadas, apenas uma ou duas palavras

"Tua boca"

A mente de desfaz da inspiração, esquecendo e fazendo esquecer o que gostaríamos de lembrar com toda a sorte de fatos, detalhes e imensidão. O relâmpago  surge e já acabou. Vela do pensamento que acaba a chama. As mãos se afastam. 
Naquela noite pairava a falta do que falar, não que não soubesse o que gostaria de dizer, mas faltava-lhe aquela doce voz interior que mostra o caminho de cada palavra e neste ajuntamento de palavras formam-se as grandes obras dos poetas. 
Os ponteiros relógio percorria o tempo, varando os minutos como um navio vai rascagando as ondas e percorrendo seu espaço na imensidão do oceano, deixando para trás apenas uma marca do que já ficou registrado. A angustia  passa por cima do prazer.  Escrever torna-se um tormento, uma dor de necessidade que se inflama com a falta da inspiração perfeita e um " Tua boca" fica solto na página, incriminando a  falta do que dizer. - "Tua boca", mas que isto vai se transformar?  
Uma  pequena pausa se faz. O relógio reconhece sua rapidez e dá a sensação de parar. A mente, agora ávida pela vontade de se mostrar criativa, pulsa as palavras ao coração e este às mãos.  

"Tua boca que toca minha boca, louca
Teu gosto, mais doce. Intenso gosto 
Perfeito... Desejo... Gosto
Devoras minha alma em Gosto
Faz-me doce.
Faz-me vivo,
Faz-me amor"


Há um sorriso, uma satisfação, um sentimento de  dever realizado, um "ah que bom!" . Claro que tudo precisa ainda ser finalizado, recontado, relido, repensado, editado, mas não importa,  o fio de inspiração veio e agora como uma droga que faz seu papel de prazer, as palavras lhe causa sensação de dever e o relógio dispara novamente. A chuva ainda cai. Os pingos ainda choram.  A noite dá lugar a um tímido amanhecer. O poeta agora  lúcido, sobrevivente da noite de sua tortura, mostra para si o poder das palavras e pensa: Alguém vai ler, vai sentir, vai imaginar e dividir comigo a magia das palavras justapostas que hoje ordenei nesta folha de papel. Este lápis, amigo e confidente de tantas noites e tantas palavaras sauda comigo a vitória. 
A porta se abre e alguém o chama. Ele desprende do seu mundo poético e  volta a ser homen. 




Um comentário:

Anônimo disse...

Que surpresa maravilhosa: abrir a página do seu blog e ver um novo texto!
Não me canso de ler e reler os seus textos, pois sempre me deparo com uma passagem "nova".
E o texto de hoje está belíssimo.
Escrever sobre a falta de inspiração para escrever. Muito interessante.
Mas parece que a "boca de alguém" está furtando toda a sua inspiração.
Quão cruel me pareceu ser a "dona dessa boca"!
Não só cruel, mas uma "devoradora da sua alma", porém, eis que descubro que a "dona dessa boca" não é cruel, afinal ela te fez doce... vivo e amor.
Creio que não há necessidade de ser finalizado, recontado, relido, repensado e editado, pois se fizer isso, o texto perderá toda a magia que está nele contida.
Tomara que a "dona dessa boca" continue "devorando a sua alma", pois me parece que foi ela quem tem fez escrever novamente (virei fã dela).