Sobre a pequena mesa de madeira estavam uma folha de papel em branco, um lápis, uma caneta e uma caneca de café. Uma luz amarelada iluminava a mesa e sobre a volta uma escuridão fria e calma. Ouvia-se na chuva que caía o lamento dos pingos que tintilhava ao bater contra o piso. Noite fria e chuvosa aquela. Suas mãos, ainda vazias de tema, percorria as laterais da mensa buscando algo que lhe apoiasse as ideias. O relógio de pedra na parede de frente marcava duas horas da manhã e continuava a percorrer o tempo e o tempo parecia percorrer rapidamente aquela saleta. Os pés, descalços, trocava de lugar a todo momento e fazia movimentos rápidos e repetitivos de um lado para outro. A cadeira, de madeira clara com estofado azul, tremia com os movimentos.
As mãos percorrem simutâneamente, uma para apanhar o lápis e a outra para endireitar a folha. Havia nisto tudo uma ideia fabulosa? Uma inspiração repentina? Um fio de endireitamento das ideias? As mãos rápidas e ansiosas por escrever junta o papel, o lápis e as ideias. Ninguém percebe, mas uma boa ideia tem tempo curto. É como um relâmpago que sai cruzando o céu de um azul mágico, com distorções de forma, numa rapidez quase imperceptível. Um piscar d'olhos. Assim são as ideias, as inspirações na madrugada. As mãos, lápis e papel se juntam e tentam desenhar o que a inspiração manda, mas uma ou duas palavras surgem e apenas isto. Nada de uma frase estruturada, com ideias formadas, apenas uma ou duas palavras
"Tua boca"
A mente de desfaz da inspiração, esquecendo e fazendo esquecer o que gostaríamos de lembrar com toda a sorte de fatos, detalhes e imensidão. O relâmpago surge e já acabou. Vela do pensamento que acaba a chama. As mãos se afastam.
Naquela noite pairava a falta do que falar, não que não soubesse o que gostaria de dizer, mas faltava-lhe aquela doce voz interior que mostra o caminho de cada palavra e neste ajuntamento de palavras formam-se as grandes obras dos poetas.
Os ponteiros relógio percorria o tempo, varando os minutos como um navio vai rascagando as ondas e percorrendo seu espaço na imensidão do oceano, deixando para trás apenas uma marca do que já ficou registrado. A angustia passa por cima do prazer. Escrever torna-se um tormento, uma dor de necessidade que se inflama com a falta da inspiração perfeita e um " Tua boca" fica solto na página, incriminando a falta do que dizer. - "Tua boca", mas que isto vai se transformar?
Uma pequena pausa se faz. O relógio reconhece sua rapidez e dá a sensação de parar. A mente, agora ávida pela vontade de se mostrar criativa, pulsa as palavras ao coração e este às mãos.
"Tua boca que toca minha boca, louca
Teu gosto, mais doce. Intenso gosto
Perfeito... Desejo... Gosto
Devoras minha alma em Gosto
Perfeito... Desejo... Gosto
Devoras minha alma em Gosto
Faz-me doce.
Faz-me vivo,
Faz-me amor"
Faz-me vivo,
Faz-me amor"
Há um sorriso, uma satisfação, um sentimento de dever realizado, um "ah que bom!" . Claro que tudo precisa ainda ser finalizado, recontado, relido, repensado, editado, mas não importa, o fio de inspiração veio e agora como uma droga que faz seu papel de prazer, as palavras lhe causa sensação de dever e o relógio dispara novamente. A chuva ainda cai. Os pingos ainda choram. A noite dá lugar a um tímido amanhecer. O poeta agora lúcido, sobrevivente da noite de sua tortura, mostra para si o poder das palavras e pensa: Alguém vai ler, vai sentir, vai imaginar e dividir comigo a magia das palavras justapostas que hoje ordenei nesta folha de papel. Este lápis, amigo e confidente de tantas noites e tantas palavaras sauda comigo a vitória.
A porta se abre e alguém o chama. Ele desprende do seu mundo poético e volta a ser homen.
Um comentário:
Que surpresa maravilhosa: abrir a página do seu blog e ver um novo texto!
Não me canso de ler e reler os seus textos, pois sempre me deparo com uma passagem "nova".
E o texto de hoje está belíssimo.
Escrever sobre a falta de inspiração para escrever. Muito interessante.
Mas parece que a "boca de alguém" está furtando toda a sua inspiração.
Quão cruel me pareceu ser a "dona dessa boca"!
Não só cruel, mas uma "devoradora da sua alma", porém, eis que descubro que a "dona dessa boca" não é cruel, afinal ela te fez doce... vivo e amor.
Creio que não há necessidade de ser finalizado, recontado, relido, repensado e editado, pois se fizer isso, o texto perderá toda a magia que está nele contida.
Tomara que a "dona dessa boca" continue "devorando a sua alma", pois me parece que foi ela quem tem fez escrever novamente (virei fã dela).
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