terça-feira, 14 de março de 2017

Uma Carta não te enviei

Escrevi as palavras nas linhas certinhas. As palavras talvez não quiseram obedecer a reta rígida e sisuda daquela página em branco. Tentei, e eu juro que tentei  ser fiel à formalidade de uma carta, mas as lembranças e as expectativas não me permitiram. Fui fiel... aos meus pensamentos.
Eu escrevi tudo que vi em você. Seus olhos, sua pele, seus cabelos, seu jeito meio sem jeito de me agradar. Registrei tudo. Papel aceita, não reclama, não impõe verdades. Papel apenas permite que sejamos, em palavras, o que muitas vezes não conseguimos ser fora delas.
Lá eu fui seu e como queria ser fora de lá, mas acho que não acreditarias nas minhas intenções. Preferencialmente Comodidade me cai melhor aos olhos alheios.
Não me lembro, e digo isto com certeza, de ter tido um momento ruim ao seu lado.
Sabe as palavras, resolvi guardá-las em alguns lugares só meu. E as linhas, foram tornando de rígidas e sisudas em curvas sinuosas e perigosas, mas nem por isto mais atraentes. São curvas delineadas do seu corpo que percebi no primeiro dia, no primeiro encontro se revelou meu gosto, meu cheiro, meu mundo.
Gostei das coisas pequenas que vi. Miniaturas de mim ou de você. Eu me vi parte do seu mundo, mesmo quando era pouco o tempo destes mundo.
Falei na carta dos "dos amores que tive.... você se transformou no mais complicado e o mais simples"
Na carta eu falei de mim. De quem eu sou. Da minha vida e da sua vida. Falei de estradas, de correntezas, de lugares calmos. Falei de margaridas e de sol. Falei da beleza e das tristezas. Falei dos encontros e das despedidas. Por fim eu falei tudo  de todas as formas que consegui.
A carta não é a vida. A carta é apenas uma visão de quem escrever e a reação de quem lê.
Quando no fim quis encerrar  a carta, me vi obstinado em falar de amor, de vida e de Palavras.
Foi neste momento que me vi em cada palavra, em cada frase.
Escutei  Tango Por una Cabeza,de Carlos Gardel ao som de violino, tomando chá na copa escura da minha casa. Solitário me embalava nos pensamentos daqueles dias com você.
Mas os detalhes por mais que fossem uma marca minha, a carta não aceitou registra-los naquela noite fria de julho. Apenas o chá quente poderia aquecer os dedos frios e a boca sem seus beijos.
Guardei pra mim a carta e não te enviei.
Amores distantes, em tempos errados, em jardins, tendem a serem fora de moda. E fora de moda sou eu.
Hoje, as páginas amareladas,  não podem mais ser endereças. Perdi seu endereço dentro do coração. Me perdi também.E o que sobra é o som agudo do violino solitário  de Katica Illényi, no escuro desta sala, regado por chá, que pelo tempo se esfriou.
Eu estou de volta ao mundo  das noites solitárias com uma caneca de chá. A noite tem horas longas e o chá se torna frio e sem sabor. Goles solitários. Voltei depois de alguns anos olhando o sol, as margaridas. Devo  repousar meu corpo novamente aqui.

Quanto a carta. Esta já não existe mais. Deixam-se as ilusões e voltemos a vida.
Corramos atrás do que nos torna normais aos olhares do mundo, mesmo que isto nos torne menos felizes e mais aceitos. Corramos  de volta a normalidade das nossas vidas. Eu sem você e você seu mim, torna-se normal a vida. Deixemos o primeiro encontro no primeiro encontro, assim somos mais normais dos normais.
A carta é apenas uma carta amarelada, sem sal e que morre cada dia mais ao som do violino, regado por um chá solitário de um coração que solitariamente volta ao seu mundo.

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